Por Henrique Lima Couto PhD
Coordenador do Departamento de Imagem da Mama da Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM)
Começa o ano de 2023 e com ele mais um ciclo de quatro anos na administração federal e nas administrações estaduais de todo Brasil. Para alguns, continuidade, para outros, renovação. Mesmo entre aqueles em que há continuidade é comum a troca de secretários e a reorganização de equipes. A cada novo ciclo, novos gestores e atores, sempre há a pergunta: como enfrentar o câncer de mama? Como reduzir a mortalidade e morbidade dessa doença tão estigmatizante?
O câncer de mama foi o câncer feminino mais diagnosticado em 2020, numa estimativa de 2,3 milhões de novos casos (11,7%) globalmente. É a quinta causa de morte por câncer, responsável por 6,9 % das mortes por câncer de todo o mundo1. No Brasil, o câncer de mama é também o tipo de câncer mais incidente em mulheres de todas as regiões, após o câncer de pele não melanoma. Em 2023, estima-se que ocorrerão 73.610 casos novos da doença (INCA, 2022). O câncer de mama é também a primeira causa de morte por câncer em mulheres no Brasil. A incidência e a mortalidade por câncer de mama tendem a crescer progressivamente a partir dos 40 anos2,3.
Desde 1988-1995, com a introdução do rastreamento mamográfico, a mortalidade por câncer de mama tem caído drasticamente na maioria dos países de alta renda4. Além dos programas de rastreamento mamográfico, a introdução e evolução de novos tratamentos sistêmicos tem contribuído de maneira importante para a redução da mortalidade. Estima-se que 1/3 da redução da mortalidade seja devido ao rastreamento mamográfico e 2/3 devido aos novos tratamentos sistêmicos5. No Brasil, a nova Diretriz Diagnóstica e Terapêutica (DDT) do câncer de mama deve estabelecer em 2023 importantes avanços e incorporações no tratamento sistêmico. A DDT já foi avaliada pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) e pela população e sociedade civil organizada em consulta pública. Ela deve em breve ser promulgada.
A história da Mastologia como especialidade médica está diretamente ligada ao desenvolvimento da mamografia e da implementação do rastreamento mamográfico populacional do câncer de mama. O primeiro estudo que comprovou a eficácia da mamografia de rastreamento na redução da mortalidade por câncer de mama teve seu início em 19636. Em 1971, na esteira dos resultados favoráveis da mamografia, foi realizado o primeiro Congresso Brasileiro de Mastologia. No mesmo ano, o Mastologista João Carlos Sampaio Goes Jr. implantou o primeiro mamógrafo do Brasil7. A partir de então, a mamografia e a mastologia seguem juntas num aprimoramento técnico e científico contínuo. Em 1989, Tabar demonstrou que o rastreamento mamográfico é capaz de reduzir em 31% a mortalidade do câncer de mama8. No mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a Mastologia como especialidade médica7. Em 2000, a Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória dos EUA, aprova o primeiro mamógrafo digital9. Logo em seguida, ainda no ano 2000, o Mastologista Henrique Alberto Portella Pasqualette inicia a mamografia digital no Rio de Janeiro10. Em 2002, a Associação Médica Brasileira (AMB), o CFM e a Comissão Nacional de Residência Médica reconhecem conjuntamente a Mastologia como especialidade7. Em 2004, foi inaugurada a Residência Médica de Mastologia no país, a primeira específica no mundo7. Em 2012, foi instituído o Programa Nacional de Qualidade em Mamografia (PNQM). O PNQM é obrigatório a todos os serviços de radiologia que realizam mamografia no território nacional11.
A lei nº 14.335, de 10 de maio de 2022, garante o acesso a mamografia a todas as mulheres a partir dos 18 anos. No Sistema Único de Saúde (SUS), o rastreamento mamográfico é oportunístico, bianual dos 50 aos 69 anos6. A Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), a Federação Nacional das Associações de Ginecologistas e Obstetras (FEBRASGO) e o Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR) recomendam mamografia de rastreamento anual a partir dos 40 anos12. No Brasil, a cobertura mamográfica da população alvo tem se mantido inferior a 30% nos últimos 14 anos, independentemente do governo10. O ideal preconizado pela OMS é de 70%11. Entretanto, não é necessário grandes investimentos em mamógrafos. O número de aparelhos no país é suficiente12, embora a grande maioria seja de tecnologia ultrapassada (CR). A renovação do parque tecnológico (mamógrafos DR) é recomendada, mas não urgente. Pode ser gradual e conforme a disponibilidade dos recursos públicos. Aumentar a cobertura mamográfica mediante a implementação de um rastreamento organizado, com navegação das pacientes e capacitação contínua dos profissionais, otimizaria os recursos já existentes e proporcionaria resultados significativos com melhor eficiência e menor impacto financeiro.
Para que o programa de rastreamento e os avanços do tratamento sistêmico do câncer de mama possam se traduzir em redução de mortalidade é necessário que o sistema de saúde funcione de maneira coordenada, otimizando tempo e recursos. No Brasil, em especial na Região Sudeste, o tempo médio entre os primeiros sintomas e o início do tratamento é de 11 meses (45.9 semanas), entre o início dos sintomas e o diagnóstico histológico (biópsia) é de 8 meses (33,5 semanas) e entre o diagnóstico histológico e o início do tratamento é de quase três meses13.
A Lei nº 13.896, de 2019, estabelece que nos casos em que a principal hipótese diagnóstica seja a de neoplasia maligna, os exames necessários à elucidação devem ser realizados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, mediante solicitação fundamentada do médico responsável. A Lei nº 12.732, de 22 de novembro de 2012, estabelece que o paciente com câncer tem direito de se submeter ao primeiro tratamento no SUS, no prazo de até 60 (sessenta) dias, contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico, ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário único.
Esse é outro ponto a ser considerado: aumentar a eficiência do sistema fazendo com que a lei dos 30 e 60 dias sejam cumpridas. O SUS conta com os Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACONS)14 , o que otimiza o acesso ao tratamento das pacientes com diagnóstico histológico (biópsia) confirmado de câncer de mama. Possivelmente, o maior gargalo atualmente seja a biópsia, o exame para firmar o diagnóstico. O longo período entre a alteração mamográfica ou início dos sintomas e a biópsia (daignóstico), além de comprometer o prognóstico, acarreta desperdícios de recursos, pois se perde todo o investimento no diagnóstico precoce do rastreamento. Ampliar o acesso a biópsia para efetivamente cumprir a lei dos 30 dias (Lei nº 13.896, de 2019) é estratégico e deveria ser uma prioridade.
Nesse contexto, fica evidente o caminho para os gestores públicos nesses próximos quatro anos. Aumentar a cobertura mamográfica de forma organizada, valorizar a mastologia como especialidade, diminuir o tempo para o diagnóstico (biópsia) e tratamento e incorporar as novas diretrizes da nova DDT do câncer de mama assim que promulgada. Além disso, as políticas públicas necessitam planejamento que inclua a capacitação qualificada e permanente, em saúde mamária, de profissionais de saúde na atenção primária.
Referências:
- Global cancer statistics 2020: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries Hyuna Sung 1, Jacques Ferlay 2, Rebecca L Siegel 1, Mathieu Laversanne 2, Isabelle Soerjomataram 2, Ahmedin Jemal 1, Freddie Bray 2 CA Cancer J Clin. 2021 Feb 4. doi: 10.3322/caac.21660.
- INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Estimativa 2023: incidência do Câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2019. Disponível em: https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/cancer/numeros/estimativa Acesso em: 25 nov 2022.
- INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Atlas da mortalidade. Rio de Janeiro: INCA, 2021. base de dados. Disponível em: https://www.inca.gov.br/app/mortalidade Acesso em: 18 jan 2021.
- Mammography screening: A major issue in medicine. Autier P, Boniol M.Eur J Cancer. 2018 Feb;90:34-62. doi: 10.1016/j.ejca.2017.11.002. Epub 2017 Dec 20.PMID: 29272783
- Breast-Cancer Tumor Size, Overdiagnosis, and Mammography Screening Effectiveness. Welch HG, Prorok PC, O’Malley AJ, Kramer BS. N Engl J Med. 2016 Oct 13;375(15):1438-1447.
- Brazilian Ministry of Health / National Institute of Cancer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Guideline for early detection of breast cancer in Brasil. Vol. 32, Brochure of Public Health. 2015. 516–523 p. https://www.inca.gov.br/bvscontrolecancer/publicacoes/livro_deteccao_precoce_final_2015.pdf.
- Sobre o começo da Mastologia no Brasil. Alfredo Carlos S. D. Barros. https://www.spmastologia.com.br/historia-da-mastologia/comeco-mastologia-no-brasil.
- Tabar L, Fagerberg G, Duffy SW, et al. The Swedish two county trial of mammographic screening for breast cancer: recent results and calculation of benefit. J Epidemiol Community Health. 1989;43:107-14.
- José Michel Kalaf. Mamografia: uma história de sucesso e de entusiasmo científico. Radiol Bras 47 (4) • Jul-Aug 2014.
- https://www.boasaude.com.br/noticias/1685/brasil-mamografia-digital-revoluciona-o-diagnostico-de-cancer-de-mama.html
- Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017.
- Urban LABD, Chala LF, Bauab SDP, Schaefer MB, Santos RPD, Maranhão NMA, Kefalas AL, Kalaf JM, Ferreira CAP, Canella EO, Peixoto JE, Amorim HLE, Camargo Junior HSA.
- Ruffo Freitas-Junior, MD, PhD; Aline Ferreira Bandeira de Melo Rocha, MD; and Leonardo Ribeiro Soares, MD, PhD. Mammography Coverage in Brazil and the Presidential Elections: Is There Anything to Celebrate? JCO Glob Oncol. 2023 Jan;9:e2200358.
- Soares LR, et al. Difficult Access and Poor Productivity : Mammography Screening in Brasil. Asian Pac J Cancer Prev,20(6),1857-1864
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Portaria MS nº 2.439 de 08/12/2005